Abraão e os três anjos, de Giovanni Battista Tiepolo, 1732

Há uns anos estive em Veneza num congresso médico. Foi evidentemente uma ocasião maravilhosa para mim, que não conhecia a terra. Considero-a hoje a mais bela cidade do mundo, e estou certo de que muita gente pensa como eu. Felizmente tive tempo para percorrer as ruas e canais, devagar, entrar aqui e ali e demorar o tempo que quisesse. Por sorte, pude assistir a um ensaio de um coro juvenil numa pequena capela, fiquei ali sem ver as horas. Do Palácio dos Doges gostei, mas se me perguntarem o que mais me surpreendeu lá, aqui vai: foi uma secção do respectivo museu dedicada a cintos de castidade! Peço desculpa, mas foi mesmo. Um dia conto os pormenores. Do vasto Museu da Academia, cheio de grandes obras, recordo as três horas que passei na fila em plena rua, debaixo de uma irritante chuvinha, à espera de poder entrar. Mas valeu a pena, claro; achei que ver a “Tempestade” do Giorgione justificava a molha. É uma coisa do outro mundo...

 

Numa das noites havia uma conferência num palácio chamado Scuola Grande di San Rocco. Fica do mesmo lado do Canal Grande - mas quem vem da Praça de S. Marcos tem de ir dar uma volta longe, pela ponte de Rialto. Quando vi onde era a sessão exultei - no Guia Michelin atribuem-lhe três estrelas, “vale a viagem”.

 

Se por fora não dá muito na vista, por dentro é um espanto. Os italianos dizem que é a Capela Sistina de Veneza. Tem um riquíssimo tesouro de Tintorettos, nada menos de 54, e todos bem grandes, como podem ver aqui.

 

 

 

 

Hoje, além do turismo, a Scuola é utilizada para eventos e congressos, para o que dispões de salões menos espaventosos. Pois era então numa dessas salas mais simples, se assim se pode dizer, que tinha lugar a sessão a que compareci. Fiquei longe da tribuna e, como o som não era grande coisa, dei por mim a passar os olhos pelos ricos tectos e pelas belas paredes, cheias de obras de arte da Renascença e do Barroco. Vai daí, deparei com dois quadros que me impressionaram, mesmo ali ao lado, e não mais pude tirar os olhos deles.

Na primeira parecia haver três anjos, belíssimos, e um velhote prostrado de perfil em primeiro plano. Na outra um anjo parecia socorrer uma senhora aflita ao lado de uma criança em mau estado. Obviamente eram do mesmo artista. Em ambas as pinturas era evidente a opulência do traço e o vigor da composição. As personagens eram vistas em ângulos pouco usuais, conferindo-lhe dramatismo, e mesmo assim o desenho parecia perfeito. Evidentemente que esqueci a sessão e só pensava em saber mais quem era o autor destas maravilhas. No dia seguinte lá estava eu a ver os quadros de perto. Eram de Tiepolo, de nome próprio Giambattista, que assim se distingue do seu filho Domenico que com ele colaborou, mas de menos valor artístico. Procurei então conhecer mais sobre este portentoso pintor do século dezoito. Fiquei a saber que foi dos últimos grandes pintores venezianos, de uma fileira que vem de Bellini, Carpaccio, Giorgione, Ticiano, Tintoretto e Veronese. Contemporâneo de Tiepolo foi Canaletto, o das grandes vistas da cidade, tal como Guardi que lhe sucedeu pouco depois e de quem podemos admirar vinte quadros no museu Gulbenkian, em Lisboa. Se esta é a linhagem no tempo, podemos, por outro lado, quanto ao estilo, enquadrar Tiepolo no grupo dos artistas do período Rococó, que de uma forma esquemática dizemos que sucedeu ao Barroco e antecedeu o Neo-clássico e o Romântico. Quando se fala desse estilo vem-nos à memória sempre o grande Watteau, seguido por Boucher e Fragonard, esquecendo-nos quase sempre de outros como Chardin, que pessoalmente admiro mais, tudo nomes franceses. Ora há artistas de outras latitudes a incluir entre os rococós, e talvez o maior seja justamente o Tiepolo veneziano (então ainda não existia o estado italiano). Foi um criador imenso, principalmente de frescos

 

 Foi um criador imenso, principalmente de frescos que ornamentam palácios e monumentos, na Itália e na Alemanha, mas também se lhe devem óleos e muitos desenhos e gravuras, em que foi também inigualável - para muitos, foi o melhor desenhador da figura humana de todos os tempos. Há centenas de obras suas espalhadas pela Europa, e mesmo nos Estados Unidos as encontramos - por exemplo uma grande colecção em Chicago. Em Lisboa temos no Museu Nacional de Arte Antiga dois pequenos quadros seus, que são duas preciosidades. Mas está na hora de irmos ver o nosso quadro de hoje mais de perto. É conhecido como “Abraão e os anjos”. Para mim é uma obra-prima, e gosto de demorar os olhos sobre ele.

 

Para se entender a pintura convirá sabermos o que representa. Trata-se de uma das narrativas do Genesis, que como se sabe é o primeiro livro da Bíblia e terá sido escrito no século VIII antes de Cristo, quando os judeus estavam cativos em Babilónia, a partir de tradições orais e escritas que vinham já de tempos anteriores. Nessa altura os sacerdotes judeus sentiram necessidade de compilar e reescrever muito material que passava de geração em geração, tentando “juntar as pontas” de modo a dar um seguimento verosímil com aparência de narração histórica. O objectivo era explicar a origem dos vários povos da Palestina e vizinhança, fazendo-os derivar de figuras míticas de cuja existência real há hoje sérias dúvidas. Essas narrativas serviriam para reforçar a identidade do povo de Israel, então muito abalada desde que os respectivos reinos de Israel e de Judá tinham sido destruídos pelos assírios, e o seu povo levado para a Mesopotâmia, onde esteve em cativeiro até que os Persas o libertaram no século seguinte. Segundo conta o mencionado Genesis, o povo bíblico deriva dos descendentes do patriarca Abraão. Este era um proprietário de rebanhos que vivia na Caldeia, e que o Senhor, que é como neste tempo se designava Deus, quis que fosse o pai do povo judaico, com quem firmou uma aliança. Abraão, que na altura ainda era só Abrão, obedeceu ao chamamento de Deus e veio morar na terra de Canaã, que foi prometida à sua posteridade, trazendo consigo a mulher Sarai, o sobrinho Lot, outros familiares, servos, escravos e rebanhos. Ali esperou muitos anos novas notícias do Senhor. Estas chegaram, finalmente, quando ele já tinha perto de cem anos, e a sua esposa (que aliás era meia-irmã, o que naquele tempo não fazia mossa) ia nos noventa. As notícias eram que ele, agora chamado Abraão, iria gerar um filho à esposa, a qual por sua vez passava a chamar-se Sara. Quem lhe trouxe a improvável notícia, nesta provecta idade, foram três homens misteriosos que lhe apareceram inesperadamente numa tarde de calor, e a quem cortesmente convidou para repousarem em sua casa. A Bíblia não especifica quem eram esses três homens. Muitos autores posteriores consideraram que se tratava de três anjos; outros defendem que seria o próprio Deus em forma humana, acompanhado de dois anjos. Finalmente alguns autores cristãos, muito mais tarde, viram nesses três seres uma imagem da Trindade divina. No quadro, Abraão está de perfil. O anjo que está de frente é de uma beleza perturbante, de sexo mal definido, embora, por não ter seios, seja de admitir que é masculino. Veste uma maravilhosa capa vermelha, luminosa e vibrante, como só este artista sabe pintar. Os tecidos têm requebros e ondeados que são característicos do rococó, muito diferentes do que se via no pesado estilo barroco. Os rostos do patriarca e dos outros dois anjos estão torcidos e são vistos num ângulo forçado, para aumentar a carga emocional da cena. Aliás isso é típico de Tiepolo, que assim demonstra a sua extraordinária capacidade de desenho. A composição do quadro é perfeitamente revolucionária, em X, com corte das figuras e posições arrojadas, numa rotura total com a composição clássica. O grande contraste cromático e a luz intensa sublinham o significado transcendente do que se está a passar. Ora bem, Sara, por ser mulher não tomou parte na conversa, apesar de o assunto lhe dizer principalmente respeito: era o costume nestes tempos. Mas ouviu por detrás da porta e pôs-se a rir por achar que ter um filho nessa idade era uma coisa inimaginável. Logo o principal desses convidados deu conta e censurou-a por se ter rido; deste modo ela resolveu chamar ao futuro bebé Isaac, que quer dizer precisamente “rir-se”. Vamos agora ver outra pintura que Tiepolo fez desta curiosa situação. É um quadro tardio, mais convencional, sem o brilho ou o dramatismo do primeiro. Deve ter sido pressão de quem o encomendou, e talvez tenha sido pintado em parte por um ajudante do artista… Tiepolo alinha pela interpretação de que se trata de anjos, e representa Abraão prostrado perante eles, enquanto prosaicamente Sara, ao fundo, os aguarda para a mesa, e ergue a mão em espanto ao saber que vai ter um filho.

 

 

É interessante, já agora, conhecer a continuação desta história. Ela liga-se a outras que provavelmente tiveram existência autónoma, mas que foram na altura “costuradas” de modo a dar sequência e um sentido religioso aos acontecimentos. A seguir a este episódio da visita dos três anjos, o Genesis relata a tragédia da destruição de Sodoma e Gomorra. Deus decidiu arrasar essas cidades por causa da vida dissoluta dos seus habitantes. Ora em Sodoma havia um homem honesto, e só um, ao que parece. Era Lot, o sobrinho de Abraão, que fora para lá viver para que os seus rebanhos não se juntassem com os do tio. Tinha ele duas filhas novinhas, virgens, prometidas em casamento a dois jovens da terra. Ora, e aqui está a ligação com o episódio anterior, dois dos anjos que tinham visitado Abraão seguiram caminho para Sodoma, a fim de verem in loco a devassidão que por lá imperava, com vista ao castigo que o Senhor tencionava aplicar. Essa é uma história grande, que fica para outra altura. No entanto por agora convém contar uma parte, já se verá porquê. É que esses mensageiros de Deus foram recebidos por Lot em sua casa com todas as honras, à boa maneira oriental. Mas imagine-se que os homens de Sodoma, todos eles, diz o Genesis “sem excepção”, foram bater à sua porta para procurar ter sexo com os enviados de Deus… Tal era a sua depravação, acentua a Bíblia. O honesto Lot ficou horrorizado com essa possibilidade, principalmente por ser falta de respeito para com os seus hóspedes, uma coisa que desonrava qualquer judeu. Por isso chegou a oferecer as suas duas filhas virgens para que os patifes dos sodomitas “lhes fizessem o que quisessem” (não consta que elas tivessem sido consultadas a esse propósito) mas os sujeitos não estavam interessados, queriam era os rapazes… Com se vê, a beleza dos anjos tem os seus inconvenientes. Creio que Tiepolo estava ciente disso quando pintou os belos seres andróginos que vemos no quadro. Nota-se que eles estão preocupados, aliás, como se previssem aquilo porque iriam passar. Há que reconhecer que tiveram pouca sorte os energúmenos, foram logo lembrar-se de cobiçar os enviados do Senhor. Por isso eles castigaram-nos sem piedade, causando-lhes imediata cegueira, e assim os puseram em fuga. Como se sabe, nessa noite caíu enxofre e fogo sobre as duas cidades pecadoras, que arderam completamente, matando toda a gente, excepto Lot e as filhas que os anjos obrigaram a escapar-se na hora, sem olhar para trás.