O sono da pessoa idosa
Todos os profissionais que lidam com pessoas de idade avançada sabem que elas, numa considerável proporção, não se mostram satisfeitas com o seu sono. Uma atitude generalizada entre os pacientes idosos, iniciada por vezes dezenas de anos atrás, é a toma continuada de medicamentos para dormir. Na realidade, entre as preocupações que eles mais manifestam nas consultas está precisamente o receio de dormir mal. Se é um facto que muitos deles referem dificuldade em adormecer, caso não tomem o medicamento a que se habituaram, também é verdade que outros declaram que acordam muitas vezes de noite e lhes custa a reatar o sono, ou ficam mesmo acordados durante o resto da noite. Em face destas queixas, os médicos reagem frequentemente prescrevendo novos indutores de sono, ou reforçando a sua dose. Isto, na maioria das vezes, tem por consequência que o doente vai passar as manhãs sonolento, e pela tarde quer fazer a sua sesta mais ou menos demorada… para ao fim do dia se voltar e excitar com o medo de não dormir. É o que se pode chamar com toda a propriedade um ciclo vicioso, que não raras vezes desemboca na inversão do ritmo do sono: acordado durante a noite, sonolento de dia. Andam, como se diz vulgarmente, “com o sono trocado”.
Consequências da desorganização do sono nos idosos
Vários estudos realizados nas mais diversas comunidades apontam para uma prevalência de insónia ou má qualidade de sono, entre os idosos, que oscila entre 25 e 50 por cento. Em ambientes institucionais como os lares residenciais esses valores são ainda superiores, em regra, o que está associado com a alta percentagem de internados nesses lares a receberem permanentemente medicação hipnótica à noite.
O sono é um fenómeno fisiológico universal, que existe em praticamente toda a série animal, até entre os insectos, e afecta todo o funcionamento do organismo. Durante o sono prevalece o metabolismo anabólico, com síntese de proteínas, o que significa que estão activados os processos de restauração dos tecidos corporais, designadamente a massa óssea e muscular. Paralelamente há uma eliminação de citoquinas, substâncias tóxicas que são responsáveis pela morte neuronal. É também eliminado o excesso de massa gorda, através de um mecanismo denominado lipólise. As defesas imunitárias são reforçadas. O organismo repara assim o desgaste do dia anterior e prepara-se para fazer face ao stresse que estará para vir.
Desta maneira compreende-se que, quando se dorme menos que o necessário, pode haver redução da massa muscular e óssea, tendência para o aumento de peso e desencadeamento de diabetes, redução das defesas contra agressões externas e infecções, e aumento da destruição de neurónios no sistema nervoso central. A privação de sono tem também consequências directas sobre a vida psíquica, a começar pela fatigabilidade e perda de capacidade criativa. A memória mostra pior consolidação, pelo que certos eventos poderão não ser devidamente fixados. A pessoa mostra-se geralmente mais irritável, impaciente e por vezes agressiva. O indivíduo que, durante a noite, dorme menos do que necessita, tem tendência a apresentar sonolência diurna, a sua atenção e outras funções cognitivas são afectadas e pode ter períodos de confusão. As pessoas que estão ainda activas mostram falhas de atenção e erros no trabalho e estão naturalmente sujeitas a especiais riscos na condução automóvel. Queixam-se frequentemente de dores no corpo e de zumbidos ou vertigens. Além disso tomam muitas vezes café em excesso, para combaterem a sonolência diurna, o que pode acarretar arritmias, hipertensão e, chegada a noite, novamente dificuldade em adormecer, levando ao fatal abuso de hipnóticos.
Modificações do sono na idade avançada
Um dos mitos mais vulgarizados neste domínio é o e que os idosos têm menos necessidade de dormir do que as pessoas mais novas. Talvez isso possa ser verdade se fizermos a comparação com jovens de 15 ou 20 anos, mas é seguramente falso se a referência for a idade adulta ou a meia-idade. No total das 24 horas, os idosos necessitam de dormir em média tanto quanto dormiam a meio da vida, isto é, cerca de sete a oito horas. A crença vulgarizada de que eles dormem menos resulta de o seu sono ser mais fragmentado, com despertares frequentes a meio da noite, e com períodos mais longos em que estão acordados no leito sem conseguir dormir – ao que se chama baixa eficiência do sono. Também se esquece muitas vezes que eles fazem pequenas sestas durante o dia, principalmente durante a tarde.
Sabe-se que o sono não é homogéneo e comporta vários estádios, que se sucedem normalmente em quatro ou cinco ciclos por noite. Para simplificar distinguiremos entre o sono chamado rápido ou leve (estádios 1 e 2) e o sono lento ou profundo (estádios 3 e 4). Este último surge principalmente nos primeiros ciclos da noite, e acredita-se que é nesses períodos de sono mais profundo que o organismo segrega determinadas hormonas, intensifica as suas defesas imunitárias e reforça a memória a longo prazo. Há ainda o sono REM, assim chamado por surgirem movimentos rápidos dos globos oculares, e durante o qual existe uma atonia muscular completa; é nos estádios REM que a pessoa tem sonhos, e atribui-se-lhes também um papel importante na consolidação da memória recente.
Ao longo do envelhecimento assiste-se a uma progressiva alteração da “arquitectura” ou estrutura do sono, com redução do sono profundo, aumento do sono leve ou superficial, mais mudanças de estádio e mais despertares. É pois um sono mais ligeiro e mais fragmentado. Mas estas alterações podem considerar-se ainda normais, para a idade, não tendo directamente a ver com a desorganização a que acima fizemos referência. O que se passa frequentemente é que muitas pessoas de idade avançada não aceitam essas alterações normais e desejariam dormir como dantes, terem um sono sólido e continuado durante toda a noite. Daí muitas das suas queixas, e a sua tendência a recorrer ao abuso de hipnóticos, com todas as suas más consequências. Na realidade, os medicamentos mais comuns amentam o sono leve, mas não o profundo, que seria o mais necessário. Outros impedem o sono REM. A maioria tem no idoso uma acção prolongada, causando sonolência ou falta de forças na manhã seguinte, que é quando mais conviria que ele estivesse activo e estimulado. O resultado é o que se costuma designar por má qualidade de sono. É paradoxal que muitas pessoas de idade avançada se queixam de não dormir o suficiente, quando o que se verifica é que dormem até mais que o necessário, embora um sono de má qualidade e fora das horas apropriadas.
Porque dormem mal os idosos?
O sono é regulado por mecanismos neurais complexos, onde desempenha papel fulcral o núcleo supraquiasmático, situado no hipotálamo, Esta formação nervosa organiza o ritmo fisiológico ao longo das 24 horas do dia. O ritmo circadiano, como é designado, estende-se a outras funções além do sono propriamente dito: a secreção de certas hormonas e o próprio metabolismo, como se disse, são aqui regulados e sincronizados. Existem certamente factores genéticos envolvidos – sabemos por exemplo que certos indivíduos têm desde a juventude tendência constitucional para dormir muito, e outros (os chamados short-sleepers) relativamente pouco. Os hábitos adquiridos ao longo da vida têm também a sua importância. Mas é bem sabido que existem sinais provenientes do meio externo que actuam como desencadeadores do sono ou por outro lado como causadores de estimulação e alerta. O primeiro e mais importante é sem dúvida a luz ambiente. A sua atenuação ao fim do dia, conjugada com baixa geral de temperatura, constitui um sinal para os centros nervosos, o qual provoca a aparição de sono. Uma hormona segregada na epífise, a melatonina, surge quando a luz decai e causa o adormecimento. As situações monótonas também actuam no mesmo sentido. Entre elas poderá estar a leitura ao terminar o dia. Inversamente, os eventos sociais, a audição de rádio ou televisão, as conversas particularmente sobre temas fora do usual, e todos os acontecimentos com carga emocional mostram efeito estimulante e dificultam o adormecimento. É bem sabido como o ruído e a agitação prejudicam o adormecer ou despertam a pessoa que dorme. Papel semelhante podem ter estímulos internos. A ansiedade, mas também sintomas patológicos como a dor física ou a febre, impedem o repouso nocturno. Uma refeição demasiado pesada ou uma actividade física excessiva nas últimas horas do dia podem impossibilitar o sono.
Deste modo poderemos compreender como actuam algumas causas de insónia ou de má qualidade de sono na pessoa idosa. Consideremos as insónias consoante a sua duração.
Chamamos insónia ocasional aquela que ocorre associada com eventos fortuitos de teor emocional, tais como conflitos, necessidade de se deslocar no dia seguinte a uma repartição ou serviço de saúde, ou qualquer mudança imprevista na sua rotina. Pode haver dificuldade em adormecer ou de reatar o sono após despertar, mas geralmente não há uma repercussão importante na vida diária.
A insónia de curta duração dura menos de três semanas e está também muitas vezes ligada a mudanças nas rotinas: alteração de residência, quarto mais desconfortável, ruído exterior, doença de familiar. Surge também associada com dor, febre ou outra alteração na saúde física.
Quando as dificuldades duram mais de três semanas fala-se de insónia de longa duração. Pode haver persistência de qualquer das causas atrás referidas, mas o relevo vai para as consequências de doença física ou efeitos de medicamentos que estejam a ser ministrados, bem como perturbação psíquica principalmente de tipo depressivo, e ainda as situações que se classificam como insónia primária. Entre estas últimas, que até há pouco eram pouco diagnosticadas, mas que na realidade são bastante frequentes e se repercutem significativamente na saúde do doente, estão apneia do sono, o síndromo das pernas inquietas e a mioclonia nocturna. A primeira consiste em frequentes paragens respiratórias em indivíduo muitas vezes obeso e com tendência a ressonar (roncopatia), provocando sono de má qualidade e sonolência diurna. É necessária uma intervenção especializada nestes casos, para diagnóstico e tratamento, dado comportar riscos importantes. O síndromo das pernas inquietas consiste na necessidade de mexer uma ou as duas pernas com curtos intervalos, geralmente de menos de um minuto, para fazer cessar uma sensação muito desagradável que retorna constantemente. Ocorre mais ao fim do dia, em situações de repouso, e pode impedir o adormecimento. Na mioclonia nocturna o indivíduo adormecido tem movimentos involuntários com as pernas, que também se repetem em breves intervalos, a ponto de provocar mal estar no companheiro. Outra situação patológica, menos frequente, mas não rara, e que também se repercute no parceiro de quarto, é a perturbação do sono REM, em que o paciente tem agitação motora sempre que está a sonhar, podendo mostrar-se agressivo ou destrutivo. Todas estas perturbações são susceptíveis de beneficiar com tratamento especializado.
Prevenir as alterações do sono
Deixando de lado estas situações mais específicas de insónia primária, devemos reconhecer que muito se pode fazer para corrigir os erros e desacertos que conduzem ao mau dormir de que se queixam tantas pessoas de idade avançada. É com uma verdadeira higiene do sono que os prestadores de cuidados a idosos se devem preocupar, uma vez que o sono de má qualidade causa sofrimento e agrava a incapacidade, além de poder gerar novas doenças ou agravar as que existem.
Começando pelo horário, é necessário evitar excesso de tempo no leito. O idoso não deve deitar-se demasiado cedo, e se isso já acontece convém ir atrasando progressivamente a hora de deitar até se chegar àquela que favoreça um certo convívio social antes de se recolher, e permita dormir até à hora próxima do pequeno-almoço. Este horário deve possuir uma certa regularidade, evitando-se mudanças frequentes. Durante o dia deve haver suficiente actividade física, mental e social, sobretudo durante a manhã, cessando cerca de quatro horas antes da hora de dormir. As sestas são em princípio de evitar, excepto em pessoas mais fragilizadas ou de idade mais avançada. Neste caso deverão ser feitas no leito e não no cadeirão, e por tempo limitado, à volta de 30 a 45 minutos.
Quanto ao estilo de vida, convém evitar discussões e conversas sobre temas sensíveis ao fim do dia. As novidades bem como os planos para o dia seguinte não são assuntos que devam ser debatidos nas últimas horas antes de deitar. Naturalmente que o tabaco deve ser proscrito, e evitados o álcool, café, chá e chocolates. Não convém que se passe as horas da tarde em ambiente escurecido, a luz clara é vantajosa até pouco antes da hora de deitar. A refeição da noite será leve, podendo haver ainda uma bebida ligeira antes de deitar acompanhada por bolacha ou tosta sem gordura.
Importa que o quarto seja protegido do ruído, bem como da luz da manhã – convém que o idoso desperte em condições de obscuridade. Não deve estar demasiado frio nem muito quente, pois ambas as situações prejudicam o sono. É de evitar ver televisão no quarto depois de se deitar; e as leituras na cama, a existirem, têm de ser breves e com firme suporte das costas. Não deve haver relógios luminosos ao alcance da vista. Se for necessária uma luz de posição nocturna, convém que não faça sombras na parede susceptíveis de assustar. Caso a pessoa que durma no mesmo aposento ressone e incomode, deve estar prevista a aplicação de tampões auriculares de tipo macio. A almofada deve ser baixa, se não existir objecção médica para tal. Nunca se deve prender a pessoa idosa à cama com aperto de lençóis, mas se necessário podem ser usadas protecções laterais.
Se estas recomendações valem para o idoso que reside no domicílio, elas são ainda mais prementes para aquele que habita em lar residencial. Na realidade, é aí que as perturbações de sono atingem maior prevalência, segundo mostram vários estudos. Compreende-se porquê: nos lares há mais pessoas com doença física e sujeitos a medicações que afectam o repouso nocturno; há mais ruído e agitação ambiente, e as próprias actividades dos cuidadores, por exemplo a administração de medicamentos ou a colocação de protecções para incontinência, podem ser causa de excitação.
O uso de hipno-indutores ou de outra medicação para melhorar o sono deve ser restringido ao estritamente necessário, e se possível nas doses mais ligeiras, e por tempo limitado. O médico é o único profissional que os deve prescrever. Evidentemente que há situações em que o doente toma desde há muito tempo o seu medicamento para dormir e fica intranquilo se ele for retirado. O médico deverá ponderar esses casos e eventualmente substituir o fármaco por outro menos potente ou por um placebo. Não se deve esquecer que esses medicamentos possuem efeitos secundários, entre os quais as quedas, a sonolência diurna e as perturbações da atenção e da memória, e em certos casos até podem contribuir para excitar o doente.
Em suma, se é um facto que reforçar a medicação para dormir parece sempre ser a solução mais fácil e de resultado mais imediato, também é verdade que isso pouco contribui para a melhoria da qualidade de vida do idoso. Uma atenção mais cuidadosa às condições do seu repouso nocturno é sempre geradora de mais bem-estar, tanto para o próprio idoso como para que com ele convive.
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